Introdução
No mundo globalizado de hoje, o comércio exterior se tornou uma das principais atividades econômicas para muitos empresários brasileiros. Contudo, importar e exportar mercadorias são operações complexas, que exigem um profundo entendimento das normas e regulamentos aplicáveis.
Com efeito, o descumprimento de regras aduaneiras pode resultar na aplicação de penalidades significativas, nem sempre relacionadas ao correto recolhimento de tributos, como perdimento de mercadorias e multas administrativas, que podem chegar a 30% do valor aduaneiro da carga, inviabilizando financeiramente as operações comerciais.
Diante disso, é importante que o empresário que atue ou tenha interesse em atuar com comércio internacional esteja atento às regras aduaneiras, tanto para se prevenir da aplicação de penalidades, como para, uma vez autuado, saiba se defender!
Um dos temas que frequentemente causa discussões entre empresários e Receita Federal do Brasil, no âmbito de processos administrativos sancionatórios, é a prescrição intercorrente administrativa, especialmente em relação às multas aduaneiras.
Neste artigo, vamos explorar esse conceito, analisar decisões importantes do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o tema e entender como essas decisões podem impactar as operações dos empresários.
O que é Prescrição Intercorrente Administrativa?
A prescrição intercorrente é um termo jurídico que se refere à perda do direito de cobrança de um crédito por parte do Fisco, devido à inércia administrativa. Em outras palavras, quando um processo administrativo fica parado por um longo período sem qualquer movimentação, o Estado pode perder o direito de aplicar e cobrar penalidades, como as multas aduaneiras.
Segundo a Lei Federal nº 9.873/1999, incide “a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada”.
Isto é, se durante esse período, o processo administrativo permanece paralisado por responsabilidade da administração, no aguardo de um atos mencionados no dispositivo – decisão ou despacho -, o direito de cobrar pode ser considerado prescrito.
Esse conceito é especialmente relevante no âmbito do comércio exterior, em que a complexidade dos processos e as diferentes etapas envolvidas podem levar a longos períodos de inatividade em processos administrativos.
É importante destacar que a prescrição intercorrente administrativa, prevista na legislação mencionada acima, não se aplica à cobrança de créditos de natureza tributária, seja por não pagamento de tributo, seja por descumprimento de regra referente a obrigações acessórias relacionadas à apuração e à cobrança de tributos.
É justamente sobre este ponto que reside a principal controvérsia acerca da aplicabilidade da prescrição intercorrente a multas aduaneiras: essas penalidades teriam natureza tributária ou não?
Acerca dessa controvérsia, vamos analisar o entendimento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais e do Superior Tribunal de Justiça.
O CARF e a Prescrição Intercorrente Administrativa: Acórdão nº 3003-002.208
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) é o principal órgão de julgamento de recursos administrativos em matéria tributária e aduaneira no Brasil. Suas decisões são fundamentais para a interpretação e aplicação das normas fiscais, incluindo aquelas relacionadas ao comércio exterior.
No acórdão nº 3003-002.208, o CARF analisou um caso específico em que a prescrição intercorrente foi alegada por um contribuinte em um processo que envolvia a cobrança de multa aduaneira, por prestação de informação no SISCARGA fora do prazo, em desrespeito ao art. 22 da IN 800/2007.
Nota-se, de pronto, que o caso não envolvia uma obrigação acessória relacionada à fiscalização, apuração e cobrança de tributos, mas simplesmente ao controle aduaneiro.
Na ocasião, o processo administrativo ficou paralisado por mais de cinco anos, sem qualquer movimentação por parte da administração. O contribuinte, então, alegou a prescrição intercorrente, argumentando que o longo período de inatividade caracterizava a perda do direito de cobrança por parte do Fisco.
Ao analisar o caso, o CARF entendeu que o referido instituto – prescrição intercorrente da Lei Federal nº 9.873/1999 – não se aplicaria à situação analisada, por se tratar de processo administrativo fiscal, suscitando o enunciado da Súmula CARF nº 11 para fundamentar a decisão, segundo a qual: “Não se aplica a prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal”.
A grosso modo, para o CARF, não interessa a natureza da sanção aplicada – se tributária ou se administrativa -, mas apenas se aquela penalidade está sendo cobrada por meio do processo administrativo fiscal, regulado pelo Decreto nº 70.235/72.
Como se sabe, o Decreto-Lei nº 37/66 elegeu o processo administrativo fiscal para apurar as infrações aduaneiras e aplicar as sanções devidas, mesmo quando estas não tenham relação direta com o recolhimento de tributos, o que justificaria o entendimento do CARF.
O STJ e a Prescrição Intercorrente
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) é a instância máxima no Brasil para a interpretação da legislação infraconstitucional. Suas decisões têm um impacto significativo na aplicação das normas jurídicas em todo o país, e o entendimento do Tribunal sobre a prescrição intercorrente em processos administrativos fiscais é particularmente relevante para o comércio exterior.
No Recurso Especial nº 1.999.532 – RJ, a 1ª Turma do STJ foi chamada a decidir sobre a aplicação da prescrição intercorrente em um caso envolvendo a cobrança de multas aduaneiras, também sem relação com o recolhimento de tributos.
O caso analisado envolvia uma situação em que o processo administrativo ficou paralisado por vários anos, sem qualquer movimentação ou ação por parte da administração.
O STJ, ao julgar o recurso, reafirmou a possibilidade de aplicação da prescrição intercorrente em processos administrativos fiscais, quando tratem exclusivamente de apuração de multas aduaneiras sem relação com o recolhimento de tributo.
Para tornar ainda mais claro o entendimento do STJ, vale uma incursão pelo resumo do julgamento:
III – Não obstante o cumprimento de exigências pelos exportadores e transportadores durante o despacho aduaneiro tenha por finalidade verificar o atendimento às normas relativas ao comércio exterior – detendo, portanto, cariz eminentemente administrativo -, a observância de parte dessas regras facilita, de maneira mediata, a fiscalização do recolhimento dos tributos, razão pela qual o exame do escopo das obrigações fixadas pela legislação consiste em elemento essencial para esquadrinhar sua natureza jurídica. IV – Deflui do § 2º do art. 113 do Código Tributário Nacional que a obrigação acessória decorre da legislação tributária, reservando, desse modo, o caráter fiscal às normas imediatamente instituídas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos e afastando, por conseguinte, a atribuição de semelhante qualificação a regras cuja incidência, apenas a título reflexo, atinjam as finalidades previstas no dispositivo em exame. V – O dever de registrar informações a respeito das mercadorias embarcadas no SISCOMEX, atribuído às empresas de transporte internacional pelos arts. 37 do Decreto-Lei n. 37/1966 e 37 da Instrução Normativa SRF nº 28/1994, não possui perfil tributário, porquanto, a par de posterior ao desembaraço aduaneiro, a confirmação do recolhimento do Imposto de Exportação antecede a autorização de embarque, razão pela qual a penalidade prevista no art. 107, IV, e, do Decreto-Lei n. 37/1966, decorrente de seu descumprimento, não guarda relação imediata com a fiscalização ou a arrecadação de tributos incidentes na operação de exportação, mas, sim, com o controle da saída de bens econômicos do território nacional.
Mais recentemente, no dia 27/08/2024, a 2ª Turma do STJ foi chamada a enfrentar a mesma temática, no âmbito dos Recursos Especiais nº 2002852/SP e 2120479/SP.
Na oportunidade, seguiu integralmente o entendimento da 1ª Turma, formando uma unanimidade dentro da 1ª Seção do referido tribunal, especializada em direito público em geral, a favor do contribuinte.
Segundo os ministros integrantes da 1ª Seção do STJ, o que importa para verificar a aplicabilidade, ou não, da prescrição intercorrente administrativa é atestar o perfil tributário ou administrativo/aduaneiro da obrigação descumprida, e não o fato de a infração ser apurada via processo administrativo fiscal, como entende o CARF.
É importante destacar que este entendimento do STJ, apesar de unânime no âmbito da 1ª Seção do tribunal, não é vinculante para os demais juízes, nem mesmo para os demais órgãos da administração pública, de modo que os a Receita Federal e o CARF podem continuar afastando a aplicação do instituto a multas aduaneiras.
Implicações Práticas para Empresários do COMEX
Entender a prescrição intercorrente e as decisões do CARF e do STJ sobre o tema é crucial para empresários que operam no comércio exterior e seus advogados. O reconhecimento da prescrição intercorrente pode ser a diferença entre pagar uma multa significativa ou ter essa obrigação extinta.
Para que essa defesa seja efetiva, é necessário um acompanhamento rigoroso dos processos administrativos. Empresários e advogados devem monitorar continuamente o andamento dos processos para identificar períodos de inatividade que possam caracterizar a prescrição intercorrente.
Além disso, é importante documentar toda a comunicação com a administração pública, garantindo que, em caso de inatividade, haja provas concretas para embasar a alegação de prescrição.
É importante estar ciente também de que a prescrição intercorrente não é automática. É necessário que haja uma manifestação formal da administração ou do Judiciário reconhecendo a prescrição. Assim, a atuação proativa dos empresários e seus advogados é essencial para garantir que esse direito seja efetivamente reconhecido.
Outro aspecto prático importante é a elaboração de uma estratégia jurídica robusta. Ao perceber a possibilidade de prescrição intercorrente, o empresário ou seu advogado deve agir prontamente, requerendo formalmente o reconhecimento da prescrição junto ao Poder Judiciário, considerando a jurisprudência do STJ analisada acima.
De fato, a alegação deste instituto no curso de um processo administrativo fiscal, seja diante da Delegacia da Receita Federal, seja diante do CARF, pode ser inútil, dado o entendimento consolidado deste órgão.
Por fim, é útil o empresário que atua com comércio exterior ter em mente algumas das penalidades aduaneiras com caráter eminentemente administrativo, que poderiam ser afastadas por força da prescrição intercorrente:
- Multa por ausência de Licença de Importação;
- Multa do Licença de Importação vencida; e
- Multa por atraso na prestação de informações no SISCARGA.
Conclusão
A prescrição intercorrente administrativa é um instituto jurídico que oferece proteção aos contribuintes contra a inércia do Estado. No contexto das multas aduaneiras, essa proteção é ainda mais relevante, dado o impacto financeiro que essas multas podem ter sobre as operações de importadores , exportadores e demais agentes.
As decisões recentes do STJ demonstram uma tendência clara no reconhecimento da prescrição intercorrente em casos de inatividade prolongada dos processos administrativos. Para os empresários, isso significa uma maior segurança jurídica e a possibilidade de contestar cobranças indevidas de maneira eficaz.
Entretanto, é fundamental que os empresários e seus advogados estejam vigilantes e preparados para agir prontamente quando necessário. O monitoramento contínuo dos processos, a documentação adequada e a elaboração de uma estratégia jurídica bem fundamentada são essenciais para garantir que os direitos dos contribuintes sejam protegidos.
A prescrição intercorrente, portanto, não é apenas um conceito jurídico, mas um verdadeiro escudo contra a inércia administrativa e a arbitrariedade na aplicação de multas aduaneiras.