Interposição fraudulenta presumida e a responsabilidade do importador ostensivo

Em uma interposição fraudulenta presumida, como deve ser punido o importador ostensivo, que “cede o nome”? Multa substitutiva do perdimento, multa da Lei nº 11.488/07, ou ambas? Vamos descobrir!

Introdução

Em um mundo cada vez mais globalizado, com distâncias reduzidas pela capacidade produtiva e pelo avanço tecnológico e com interdependência econômica entre as nações soberanas, o comércio internacional de mercadorias se torna mais e mais alvo de atenção não apenas da iniciativa privada, mas também dos órgãos estatais incumbidos de regulá-lo e fiscalizá-lo.

Com efeito, com o aumento inevitável no fluxo de mercadorias nas fronteiras brasileiras, cresce em proporção direta a preocupação da Receita Federal do Brasil com a regularidade no pagamento dos tributos e com o controle das mercadorias e dos intervenientes no comércio internacional. 

Isso decorre de inúmeros fatores, tais como: 

1) a função extrafiscal da tributação aduaneira, que, a depender da política fiscal vigente, assume finalidade de contribuir com o equilíbrio a balança econômica brasileira e com a proteção da produção nacional; 

2) a contribuição dos tributos aduaneiros com o orçamento público, o qual tem exigido maior arrecadação por parte dos entes federativos, ainda que esta não seja a função primordial de tais exações; 

3) a necessidade de combate ao contrabando e ao ingresso de produtos falsificados e de itens de comercialização proibida em solo nacional; e

4) a necessidade de combater a lavagem de dinheiro e a atuação de organizações criminosas que se valem do comércio exterior para expandir suas operações. 

Com isso em mente, não causa assombro o fato de que uma das principais preocupações da Receita Federal do Brasil nesse âmbito seja identificar quem são as partes efetivas de toda e qualquer operação de importação ou de exportação, seja ela direta, seja indireta, por ser informação essencial para criar um track record das empresas atuantes e identificar atividades heterodoxas, potencialmente ilegais.

Ora, diante de um número crescente de operações internacionais, as aduanas ao redor do mundo têm de criar medidas para encurtar caminhos e ganhar efetividade, de modo que  a gestão de dados dos intervenientes do comércio exterior se mostra alternativa inteligente para essa finalidade

Dada a importância de se conhecer muito bem os agentes que participam de operações internacionais por meio de nossas fronteiras, o legislador brasileiro criou punição gravíssima para aqueles que ocultam o sujeito passivo, o real vendedor, comprador ou responsável pela operação de importação ou exportação, mediante fraude ou simulação, inclusive por meio de interposição fraudulenta, qual seja, a pena de perdimento de mercadorias, conforme art. 23, V, e §1º, do Decreto-Lei nº 1.455/76.

Quando não é possível a identificação do terceiro ocultado, o legislador criou a figura da interposição fraudulenta presumida, que considera ter ocorrido a infração quando o importador ostensivo não comprova a origem, disponibilidade e efetiva transferência dos recursos empregados na operação de importação, vide art. 23, §2º, do Decreto-Lei nº 1.455/76.

No entanto, a satisfação de tal penalidade possui um óbice, um nêmesis, muito evidente: só se leva mercadorias a perdimento se for possível encontrá-las e retê-las, o que muitas vezes se mostra inviável, notadamente quando a infração é constatada pela Aduana após o desembaraço da carga. 

Nesses casos, não sendo possível apreender a carga, pune-se o responsável pela fraude com multa substitutiva em valor equivalente ao valor aduaneiro da mercadoria, o que se mostra bastante lógico, como prevê o §3º do art. 23 do Decreto-Lei nº 1.455/76.

Posteriormente, foi editada a Lei Federal nº 11.488/2007, que, em seu art. 33, aplicava multa de 10% do valor aduaneiro da mercadoria objeto da operação fraudulenta para aquele que ceder o nome com vistas a acobertar o terceiro ocultado

Diante desse quadro legislativo, surgiram diversas dúvidas, como: 

1) aplicada a pena de perdimento, o importador ostensivo ainda assim tem de responder pela multa de 10% do valor do aduaneiro em razão da cessão de nome? 

2) em casos de substituição da pena de perdimento pela de multa em valor equivalente ao valor aduaneiro, o importador ostensivo é responsável de forma solidária com o terceiro ocultado por esta multa, ou deve suportar apenas a multa de 10%? 

3) em casos de interposição fraudulenta presumida, quando não se mostra possível identificar o terceiro ocultado, o importador ostensivo responde pela multa de 100% do valor aduaneiro, pela multa de 10% do valor aduaneiro, ou por ambas?

A fim de delimitar o escopo deste artigo, vamos passar a investigar apenas o questionamento de item 3), em que pese a importância tanto acadêmica, quanto prática, dos outros dois problemas.

Importador ostensivo e interposição fraudulenta presumida: qual a penalidade aplicável?

Inicialmente, é válido se perguntar a quem a penalidade de perdimento busca punir, se ao importador ostensivo, que cede o nome para a prática fraudulenta, ou se ao terceiro ocultado, verdadeiro responsável e interessado direto naquela operação. 

Segundo o Professor Dr. Solon Sehn, não há dúvidas que a referida penalidade visa atingir o terceiro ocultado, na medida em que a carga era destinada a este, e não a quem lhe emprestou o nome. Cita-se: 

A pena de perdimento tem como sujeito passivo o importador oculto. Esse, na condição de proprietário da mercadoria, é o destinatário legal da sanção, vale dizer, quem deve sofrer os efeitos patrimoniais negativos previstos pela ordem jurídica. (Grifo não original)

No entanto, ainda segundo o referido autor, o importador ostensivo é coautor da infração de interposição fraudulenta, independentemente da modalidade, uma vez que a cessão de nome é “parte integrante e indissociável da conduta vedada e sancionada pelo ordenamento jurídico”.

De fato, no contexto de uma operação de comércio exterior, em que os agentes são obrigados a informar os participantes do negócio jurídico nas declarações fiscais competentes, só é possível ocultar o real interessado se outra pessoa jurídica assumir a posição ora de importador, ora de exportador. 

Por tal razão, o Professor Dr. Solon Sehn conclui que não há que se falar em concurso formal, mas, sim, uma unidade de fato, e um aparente conflito de normas que preveem a punição ao importador ostensivo, solucionável pelo princípio da especialidade. Vejamos:

O que se tem é uma unidade de fato e uma pluralidade de tipos infracionais concorrentes de aparente aplicabilidade: o § 3º do art. 23, V, do Decreto-Lei nº 1.455/1976 e o art. 33 da Lei nº 11.488/2007. O concurso aparente é afastado por meio do critério lógico da especialidade. Esse, como se sabe, estabelece que – havendo mais de um tipo infracional com elementos em comum – aplica-se aquele com o maior número de atributos especializantes. O art. 33 afasta a incidência do § 3º do art. 23, V, porque descreve especificamente a conduta do importador ostensivo que cede o seu nome para acobertamento da operação de comércio exterior praticada por terceiros. A Lei nº 11.488/2007 – em função da dimensão reduzida do benefício auferido pelo importador ostensivo e da hipossuficiência econômica própria de quem se presta ao papel de testa-de-ferro – estabeleceu uma sanção específica, proporcional à gravidade de sua atuação, valorada objetivamente em dez por cento.

Isto é, para o doutrinador, o importador ostensivo deveria ser punido apenas pela multa de 10% prevista no art. 33 da Lei Federal nº 11.488/2007, independentemente da modalidade da interposição fraudulenta constatada pela fiscalização. 

A posição defendida pelo Prof. Dr. Solon Sehn foi corroborada em alguns julgados do CARF e do STJ. Veja-se: 

STJ – TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. IMPORTAÇÃO MEDIANTE INTERPOSIÇÃO FRAUDULENTA DE TERCEIROS. CONVERSÃO DA PENA DE PERDIMENTO DE BENS NA MULTA PREVISTA NO ART. 23, V E § 3º, DO DECRETO-LEI N. 1.455/1976. PENALIDADE APLICÁVEL APENAS AO IMPORTADOR OCULTO. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA COM O ART. 33 DA LEI N. 11.488/2007. 1. A controvérsia veiculada nos presentes autos diz respeito à aplicação, em caráter solidário, da multa prevista no § 3º do art. 23 do Decreto-Lei n. 1.455/1976 ao importador ostensivo na hipótese de importação mediante interposição fraudulenta de terceiros efetiva (art. 23, V, do Decreto-Lei n. 1.455/1976) e presumida (§ 2º do Decreto-Lei n. 1.455/1976 e art. 33 da Lei n. 11.488/2007), quando da impossibilidade da aplicação da pena de perdimento prevista no § 1º de referido decreto. 2. A interpretação sistemática de referidos dispositivos denota que os casos de importação mediante interposição fraudulenta de terceiro – irrelevante seja ela efetiva ou presumida – admite a aplicação primeira da pena de perdimento de bens e, na sua impossibilidade, consequente aplicação da multa correspondente ao valor da operação ao importador oculto (§ 3º do Decreto-Lei n. 1.455/1976), bem como a aplicação da multa de 10% do valor da operação ao importador ostensivo (art. 33 da Lei n. 11.488/2007). 3. A lógica adotada pelo Tribunal de origem faz todo o sentido, uma vez que, com a pena de perdimento da mercadoria decorrente da interposição fraudulenta – seja ela efetiva ou presumida -, o patrimônio que realmente se busca atingir pertence ao importador oculto. Ora, se a própria pena de perdimento decorre justamente da conclusão de que houve interposição fraudulenta, ou seja, de que a importação que se realiza foi custeada por outra pessoa em desacordo com a legislação de regência, é forçoso concluir que a finalidade da norma, no seu conjunto, é atingir o patrimônio do real importador. 4. Tem-se que não foi por outra razão que o legislador, buscando também submeter o importador ostensivo a uma sanção, estipulou a multa de 10% do valor da operação quando ceder seu nome, inclusive mediante a disponibilização de documentos próprios, para a realização de operações de comércio exterior de terceiros com vistas ao acobertamento de seus reais intervenientes ou beneficiários (art. 33 da Lei n. 11.488/2007). 5. Registre-se, por fim, que não procede a alegativa fazendária de que a multa prevista no § 3º do Decreto-Lei n. 1.455/1976 seria aplicada somente quando houver cessão de nome pelo sócio ostensivo, pois a compreensão é que em toda e qualquer importação mediante interposição fraudulenta o importador se vale do seu nome para a realização das operações de comércio exterior de terceiros. 6. Recurso especial a que se nega provimento. (REsp n. 1.632.509/SP, relator Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 19/6/2018, DJe de 26/6/2018.)

No entanto, a posição mais recente da Câmara Superior de Recursos Fiscais do CARF é no sentido de que, no caso de interposição fraudulenta presumida, o importador ostensivo suportaria, em caráter solidário, tanto a multa do §3º do art. 23 do Decreto-Lei nº 1.455/76 quanto a do art. 33 da Lei Federal nº 11.488/2007, totalizando sanção de 110% do valor aduaneiro. Vejamos: 

Número do Processo: 11131.000177/2007-11 – Número do Acórdão: 9303-006.000 – Assunto: Imposto sobre a Importação – II -Período de apuração: 21/09/2004 a 01/12/2005 -DANO AO ERÁRIO. INFRAÇÃO. PENA DE PERDIMENTO. CONVERSÃO EM MULTA. VALOR DA MERCADORIA. LEI 10.637/02. CESSÃO DE NOME. INFRAÇÃO. MULTA. DEZ POR CENTO DO VALOR DA OPERAÇÃO. LEI 11.488/07. RETROATIVIDADE BENIGNA. IMPOSSIBILIDADE. Na hipótese de aplicação da multa de dez por cento do valor da operação, pela cessão do nome, nos termo do art. 33 da Lei nº 11.488/2007, não será declarada a inaptidão da pessoa jurídica prevista no art. 81 da Lei 9.430/96. A imposição da multa não prejudica a aplicação da multa equivalente ao valor aduaneiro das mercadorias, pela conversão da pena de perdimento dos bens, prevista no art. 23, inciso V, do Decreto-Lei nº 1.455/76. Descartada hipótese de aplicação do instituto da retroatividade benigna para penalidades distintas.

Com a devida vênia ao entendimento da CSRF do CARF, parece-nos que admitir a cumulação de sanções, considerando tratar-se de uma unidade de fato, como bem pontuado pelo Prof. Dr. Solon Sehn, violaria o princípio do non bis in idem

Não apenas isso, mas partindo da premissa de que a pena de perdimento e, por consequência, a multa substitutiva de tal pena buscam sancionar o importador real, ocultado da operação, responsabilizar o importador ostensivo também pela multa do §3º do art. 23 do Decreto-Lei nº 1.455/76 parece violar o princípio da personalidade da pena, previsto no art. 5º, XLV, da Constituição Federal. 

Conclusões

Por todo o exposto acima, conclui-se que: 

1) Com a edição da Lei Federal nº 11.488/2007, iniciou-se inúmeras controvérsias quanto às penalidades aplicáveis em decorrência da interposição fraudulenta, em ambas as modalidades, mas especialmente na modalidade presumida, dada a não identificação do real adquirente ou do encomendante da carga.

2) O CARF, por meio do Acórdão nº 9303-006.000 da CSRF, firmou entendimento de que, na interposição fraudulenta presumida, as multas do §3º do art. 23 do Decreto-Lei nº 1.455/76 e do art. 33 da Lei Federal nº 11.488/2007 são cumuláveis e aplicáveis ao importador ostensivo, o qual poderia ser sancionado em 110% do valor aduaneiro da mercadoria.

3) A 2ª Turma do STJ, por sua vez, entendeu que a Lei Federal nº 11.488/2007 criou tipo específico para o importador ostensivo, de modo que este, mesmo na interposição fraudulenta presumida, só pode ser sancionado com a multa de 10%, previsto no art. 33 do referido diploma legal. 

4) O entendimento do STJ mencionado acima vai ao encontro do posicionamento do Prof. Dr. Solon Sehn, segundo o qual o critério lógico da especialidade afasta a imputação da multa substitutiva do perdimento ao importador ostensivo, em razão do tipo infracional do art. 33 da Lei Federal nº 11.488/2007, que melhor descreve a conduta deste agente.

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