No Brasil, tem se popularizado entre os empresários a constituição de holdings para a organização do patrimônio pessoal e familiar, em razão principalmente das potenciais vantagens tributárias e da facilitação do processo sucessório que isso acarreta.
No procedimento de integralização, os empresários eram orientados a declarar, como quantia a integralizar, o valor do bem constante na Declaração de Imposto de Renda da Pessoa Física – DIRPF, a fim de evitar a tributação de eventual ganho de capital na transferência do bem para a holding.
Em tese, a depender do CNAE escolhido para a sociedade empresária que funcionaria como holding, a integralização não gerava a incidência de Imposto sobre Transmissão Onerosa de Bens Imóveis (ITBI), por estar coberta pela imunidade constitucional do art. 156, §2º, da Constituição Federal de 1988.
Alguns contribuintes mais arrojados, contudo, passaram indicar valores incrivelmente baixos na integralização dos bens imóveis ao capital social de holdings, alocando o restante do valor do bem na conta contábil de reserva de capital, com a finalidade de omitir o volume do capital alocado nessas empresas em consultas públicas e, assim, dificultar a identificação de patrimônio penhorável pelos seus credores.
Esse fenômeno não foi bem visto pelas fazendas municipais, o que ocasionou grande volume de processos judiciais para discussão acerca da extensão da imunidade constitucional do ITBI sobre integralizações, mencionada acima.
A contribuição do STF para a incidência de ITBI sobre integralizações de capital
Em razão do volume desses processos, que atingiam quantidades significativas, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a repercussão geral da matéria, criando o tema nº 796 para julgamento vinculante. Isto é, o que o STF, por meio de seus ministros, definisse acerca do tema deveria ser aplicado por todos os demais juízes, tribunais e agentes públicos fazendários.
No referido julgamento, concluído em agosto de 2020, o STF entendeu que a imunidade alcança apenas a parcela do valor do imóvel que serve para a integralização do capital social da pessoa jurídica. Assim, se, por opção do contribuinte, o valor do imóvel fosse dividido entre integralização de capital social e constituição de reserva de capital, haveria a incidência de ITBI sobre o valor alocado nesta última conta contábil.
Para tornar mais clara a explicação, segue tabela com simulação de cálculos:
Valor do Imóvel | Valor Integralizado | Valor Alocado em Reserva de Capital | Base de cálculo do ITBI |
R$ 100.000,00 | R$ 50.000,00 | R$ 50.000,00 | R$ 50.000,00 |
Alíquota do ITBI | ITBI a pagar | ||
2% | R$ 1.000,00 |
Para pecar por excesso de zelo, segue a transcrição da tese firmada pelo STF: “A imunidade em relação ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”.
O racional do STF decorreu da redação do inciso I do §2º do art. 156 da Carta Magna, segundo o qual o ITBI “não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital”.
Ora, como a formação de reserva de capital não acarreta, necessariamente, realização de capital, podendo ter outras finalidades segundo o art. 200 da Lei Federal nº 6.404/76, não haveria imunidade de ITBI sobre a parcela do valor do bem transferido à holding alocada nesta conta.
Pois bem, diante dessa mudança de paradigma jurisprudencial, os contribuintes interessados na constituição de holdings tiveram de adequar seus planejamentos, mesmo os arrojados, para integralizar todo o valor do bem constante na DIRPF, o que, por consequência, atraía a imunidade do ITBI sobre toda a operação.
No entanto, mais uma vez, os municípios credores passaram a questionar operações como esta, visto que o ITBI tem como base de cálculo o valor venal do imóvel, o que pode ser entendido como o valor de mercado do bem, e o valor indicado na DIRPF pode ser inferior a este.
Ciente disso, as fazendas municipais começaram a exigir o pagamento do ITBI não sobre o valor do bem levado ao capital social da empresa, mas, sim, sobre o valor de mercado daquele imóvel, com base em plantas fiscais de referência, ou no valor venal indicado no lançamento do IPTU.
Novamente, para fins de clareza, trazemos mais um exemplo puramente hipotético:
Valor do Imóvel na DIRPF | Valor da Planta Fiscal ou do IPTU | Valor Integralizado | Base de cálculo do ITBI |
R$ 100.000,00 | R$ 500.000,00 | R$ 100.000,00 | R$ 400.000,00 |
Alíquota do ITBI | ITBI a pagar | ||
2% | R$ 8.000,00 |
A reviravolta no STJ
Ocorre que, alguns anos depois, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) se viu assoberbado de demandas judiciais relacionadas à legalidade de os municípios se valerem de plantas fiscais ou do valor venal para fins de IPTU para determinarem a base de cálculo do ITBI e, por consequência, a quantia a pagar referente a este tributos, desconsiderando o valor da transação declarado pelo contribuinte.
Em vista disso, o STJ afetou a matéria para julgamento segundo a metodologia de recursos repetitivos, de modo que o seu entendimento sobre o assunto, uma vez formado, seria de aplicação obrigatória pelos demais tribunais brasileiros, sejam estaduais, sejam federais, conforme tema nº 1.113 da referida corte superior.
No julgamento deste tema, ocorrido em fevereiro de 2022, o STJ fixou tese com três postulados, a seguir transcrita:
a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação;
b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (art. 148 do CTN);
c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente.
A partir desse novo paradigma jurisprudencial, os contribuintes voltaram a questionar os lançamentos de ITBI com base no “valor de mercado” decorrentes de integralização de imóveis em sociedades empresárias, quando este era arbitrado unilateralmente pelo Município sem o processo administrativo próprio, seja com base em suas plantas fiscais, seja com base de cálculo do IPTU.
Até a data de redação deste artigo, os tribunais estaduais brasileiros, responsáveis por apreciar demandas de ITBI em primeira e segunda instâncias, têm se inclinado a aplicar o referido tema também em integralizações em sociedade empresárias, independentemente de estarem sendo constituídas para funcionarem como holdings.
Apenas a título de exemplo, cita-se o seguinte julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, datado de outubro de 2023:
Apelações e Reexame Necessário. Ação Declaratória de Inexistência de Relação Jurídico-Tributária c.c Obrigação de Fazer. ITBI. Integralização de bem imóvel ao capital social. Alegação de imunidade tributária e questionamento acerca da exigibilidade do ITBI sobre o valor que excede a integralização. Sentença que julgou procedente em parte a demanda, fixando como base de cálculo do ITBI o valor da transação e determinando a incidência do imposto sobre a diferença entre o valor da integralização e o valor venal previsto para o IPTU. Pretensão à reforma manifestada por ambas as partes. Acolhimento parcial. Pessoa jurídica que foi constituída em 06.07.2022. Necessidade de se aguardar o decurso do prazo de três anos previstos no § 2º do art. 37 do CTN para que se afaste ou não a imunidade condicionada. Aplicabilidade, não obstante, da tese firmada no Tema 796 de Repercussão Geral do STF. Legitimidade da incidência do ITBI sobre o excesso de integralização. Finalidade da imunidade constitucionalmente prevista que é a mobilização de bens imóveis para o desenvolvimento da atividade empresarial. Reconhecimento do direito à imunidade constitucional que deve ser limitado ao valor do capital social integralizado. Impossibilidade, todavia, de se utilizar o valor venal de referência como parâmetro para aferição do excesso entre o valor do imóvel incorporado e o limite do capital social integralizado. Valor venal de referência que não representa o valor de mercado do bem e cuja utilização, como base de cálculo do ITBI, restou terminantemente afastada no tema 1113 do STJ. Valor contábil atribuído pelo contribuinte para fins de integralização que, segundo a inteligência do tema 1.113 do STJ, é presumidamente condizente com o valor de mercado e que somente pode ser afastado mediante processo administrativo regular. Caso concreto em que inexistem, por ora, elementos capazes de infirmar tal presunção. Ausência, ainda, de vinculação entre a base de cálculo do IPTU e a base de cálculo do ITBI. Eventual excesso que, assim, deverá ser apurado em processo administrativo próprio, com a observância do contraditório e da ampla defesa, segundo as diretrizes do artigo 148 do CTN. Precedentes desta Corte. Sentença reformada em parte, a fim de reconhecer que a autora faz jus à imunidade condicionada à posterior apuração da preponderância referida no art. 37, § 1º, do CTN, devendo eventual excesso entre o valor do imóvel incorporado e o valor do capital social integralizado ser apurado em processo administrativo próprio, vedada, nesse caso concreto, a adoção do valor venal de referência e do valor venal do IPTU para tal desiderato. Recursos voluntários providos em parte. Reexame necessário ao qual se dá parcial provimento. (TJ-SP – APL: 10483853120228260053 São Paulo, Relator: Ricardo Chimenti, Data de Julgamento: 19/10/2023, 18ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 20/10/2023) (Grifo nosso)
Oportuno citar também o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. ITBI. TRANSFERÊNCIA DE BEM IMÓVEL PARA INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL SOCIAL DE PESSOA JURÍDICA. BASE DE CÁLCULO DO ITBI. VALOR DA DECLARAÇÃO DO IMPOSTO DE RENDA. PRESUNÇÃO DE VERACIDADE. TEMA 1.113 DO STJ. ISENÇÃO TRIBUTÁRIA. TEMA 796 DO STF. DIREITO LÍQUIDO E CERTO RECONHECIDO. SENTENÇA REFORMADA. 1. O Superior Tribunal de Justiça publicou, em 03/03/2022, o acórdão de mérito do Recurso Especial REsp nº 1937821/SP, afetado à sistemática qualificada dos repetitivos descrito no Tema 1113, cuja tese foi firmada nos seguintes termos: a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação; b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (art. 148 do CTN); c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente. 2. Para afastar a presunção de que o valor declarado pelo contribuinte é condizente com o valor de mercado, é necessária a instauração de processo administrativo para apurar o valor de referência do ITBI, situação não configurada na hipótese. 3. Nos termos do artigo 1.040 do Código de Processo Civil, basta a publicação do acórdão vinculante/paradigma, para que seja exigida a sua aplicação pelas instâncias inferiores, ainda que ex offício. 4. No caso em tela, vê-se que a autoridade coatora não instaurou o processo administrativo próprio, previsto no art. 148 do CTN, com o fim de afastar o valor da transação declarado pelo contribuinte, configurando-se a ilegalidade do ato que fixou base de cálculo em valor diferente do declarado. 5. Ao julgar o RE796.376/SC, em sede de repercussão geral (tema 796), o Supremo Tribunal Federal fixou a tese de que a imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso Ido § 2º do artigo 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado. 6. Conforme definido no Tema 796 de repercussão geral do Supremo Tribunal Federal, quando o valor atribuído ao bem para fins de integralização de capital, não excede o capital social total da empresa, concede-se a segurança para reconhecer a imunidade tributária para fins de integralização do capital social, nos termos do artigo 156, § 2º, inciso I, da Constituição Federal c/c artigo 36 do Código Tributário Nacional, artigo 23 da Lei Federal nº 9.249/95 (que trata sobre o imposto de renda das pessoas jurídicas) e artigo 94, III, do Código Tributário de Acreúna (Lei Complementar nº 006/97). APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDA E PROVIDA. SEGURANÇA CONCEDIDA. (TJ-GO – AC: 56329295120228090002 ACREÚNA, Relator: Des(a). DORACI LAMAR ROSA DA SILVA ANDRADE, 7ª Câmara Cível, Data de Publicação: (S/R) DJ) (Grifo nosso)
Isto é, segundo as decisões acima, também nas integralizações, deve se presumir que o valor declarado pelo contribuinte é condizente com o valor de mercado, mesmo que o tal valor declarado seja exatamente aquele indicado em sua DIRPF, o que implica a não incidência de IRPF sobre ganho de capital e a apuração de ITBI por uma base de cálculo usualmente menor, ou mesmo a imunidade deste tributo.
Como o contribuinte pode se defender?
Pelas orientações jurisprudenciais acima, fica o questionamento entre os contribuintes de como evitar a cobrança de ITBI tomando como base de cálculo valor acima do declarado, ou mesmo se ressarcir do tributo pago abusivamente nos últimos cinco anos.
Pois bem, se você realizou uma operação de integralização de bens imóveis em sociedades empresárias nos últimos cinco anos e pagou ITBI com base de cálculo acima do valor venal do bem que você declarou, saiba que é possível o ingresso em juízo para pleitear o ressarcimento do que foi recolhido indevidamente.
Infelizmente, esse ressarcimento tende a ser feito via precatório ou RPV, após o trâmite da ação judicial competente, o que costuma levar alguns anos, em razão das dificuldades financeiras de boa parte dos municípios brasileiros.
Agora, se você está no curso de uma integralização de imóveis, ou de qualquer outra operação que enseje recolhimento de ITBI, e o município está calculando este tributo com base de cálculo superior ao valor venal que você declarou, saiba que é possível o ajuizamento de medida para evitar o recolhimento a maior.
De fato, é possível que a busca pelo Poder Judiciário para questionar o lançamento antes do recolhimento, e o deferimento da lavratura da escritura pública e do registro desta na matrícula via decisão liminar, desde que haja o depósito do valor do ITBI que a municipalidade entende devido.
Com isso, o contribuinte passa a não mais ter de esperar por um RPV ou precatório para se ressarcir do tributo a maior. Como o valor está depositado em juízo, uma vez que o Poder Judiciário julgue procedente a ação, determinar-se-á a expedição de dois alvarás: um para o município, com o valor correto do tributo, e outro para o contribuinte, com aquilo que deixou de ser recolhido a título de ITBI.
Por fim, um brevíssimo conselho: no caso concreto, busque o auxílio de um advogado tributarista ou de um contador de sua confiança e conte com esse profissional para defender seu patrimônio de cobranças indevidas.